Verti-me em gotas doces, doces gotas, doces ondas de torpor incerto. Acendi
meu fumo olhando a urna do cachimbo, caldeirão vivo que estalava em fino cheiro.
“Quem toca com cautela a janela de meu quarto? É a chuva a fazer-me
serenata?”
Sim, e quem mais seria? Garoa que me agarra, que me agüenta a gargalhada, que
me guiará fluída.
Sinto nuvens pairando, cobrindo meu corpo junto a meu sorvo, meus sorvos,
meus longos e calmos mergulhos espectrais. Ah, esse céu de Vila Velha é único deste
meu ângulo, ouço o som nauseante e azedo das ruas de comércio da Glória, o cheiro do
suor das pessoas que atravessa dois andares e mistura-se à minha festa - penetras
malqueridos e mal-amados.
Não fecharei a janela agora, o dia está belo - belo e cinza - e aproveitarei das
passadas cinzas e viajarei nesse rio. A chuva é rio que passa em minha vida.
Subo no banco, debruço-me na janela, sinto o vento povoado de chocolate, suor,
fumaça, cachimbo e vinho. Escalo a janela de meu quarto. O vento é até bom, pois não
cobra seus carinhos...
“Olha minha nave, minha condução, translúcida e gotejada... prenderei um
pouco a respiração e pegarei carona pela estrada...”
Um pulo, um vôo no espaço, mergulhando numa gota desprendida do telhado.
Rapidamente nado e pelo outro lado saio. Outro pulo, outra nave, e outra, e outra...
Sigo e subo num torpor sagrado não sentindo mais meu corpo molhado.
Longe das gotas, dos gritos das pessoas, das sirenes e dos olhares dum sadismo
curioso, vejo, espatifado, o Sol rasgar as nuvens e o sal de meus olhos cansados.
Verti-me em tragos e em tragos bebeu-me a Vida... Esvazio-me pelas ruas, pelos
bueiros. A vida me foi um tanto breve por conta de goles mal tomados...